EPISÓDIO 1 - DIREITOS HUMANOS

PROGRAMA NA ÍNTEGRA

 

 

A virada da Psicologia brasileira na virada do século: Direitos Humanos
Ana Bock, Marcos Ferreira e Graça Gonçalves


Os eventos no desenvolvimento da Psicologia no Brasil na virada do século podem ser considerados uma virada na vida da profissão? Acreditamos que sim! Listamos uma série de mais de setenta eventos relacionados à profissão, que estão reunidos no projeto do compromisso social que foi gestado e implantado por meio das entidades entre os anos de 1997 e 2006.


Certamente há eventos importantes que não estão na lista que organizamos. Escolhemos focar aqueles cuja implementação aconteceu de forma articulada pelo projeto do Compromisso Social da Psicologia. Esta iniciativa não pretende produzir História da Psicologia, mas oferecer informações, depoimentos e pontos de vista para que historiadores possam fazer seu trabalho. Adotar a caracterização do projeto do compromisso social facilita esse resgate.


Por outro lado, são muitas e cada vez mais frequentes as demandas que recebemos para relatar esses eventos. Essas demandas são dirigidas de modo especial para a Ana Bock, sob cuja liderança o projeto do compromisso social foi gestado e implementado. Para atender a essas expectativas, o Instituto Silvia Lane acolheu uma iniciativa do Marcos Amaral e Elisa Zaneratto Rosa e decidiu organizar um livro sobre esse momento da vida da Psicologia. 


Na construção do livro, vamos produzir dez programas reunindo parte dos temas elencados, buscando apontar o sentido de cada um deles e sua articulação no projeto da virada. O apoio do Conde na realização desses programas tem sido condição fundamental para sua realização.


Elegemos o tema dos Direitos Humanos como primeiro tema por, pelo menos, duas razões. Tanto pela sua repercussão no projeto do Compromisso Social, quanto para trazer à cena a permanente lembrança de Marcus Matraga, nosso companheiro falecido, que foi idealizador das iniciativas para que a profissão tivesse uma assunção organizada desse tema como algo constitutivo da prática profissional em nosso país.


Tribunal dos crimes da paz


O entrecruzamento da atenção a Direitos Humanos com as iniciativas da luta pela extinção dos manicômios levou à realização de um julgamento da instituição manicomial. Em 2001, nas dependências do Congresso Nacional, o Conselho Federal de Psicologia reuniu pessoas de referência nacional nas temáticas jurídica, Direitos Humanos e saúde mental, para apreciar a acusação de produção de degradação (até de mortes) de usuários nas dependências dos manicômios.


No veredito, essas instituições foram condenadas por crimes que cometeram e cometem ainda hoje, tanto nas suas instalações tradicionais quanto nos manicômios disfarçados de comunidades terapêuticas.


O Tribunal foi um ponto de referência para a realização de vistorias em instituições manicomiais. Em articulação com OAB e Ministério Público, essas vistorias resultaram em relatórios que mostram de forma cristalina a inviabilidade da manutenção de manicômios como prática de proteção à saúde mental, já que eles se mostraram não somente incapazes disso, mas também produtores de agravamento do sofrimento mental.


Na mesma direção de denúncia do caráter criminoso dessas instituições, Marcus Vinícius organizou um livro chamado “A instituição sinistra”. Uma triste coleção de registros de morte de usuários nas dependências de manicômios. Dentre as mortes, houve uma em que foi declarada ocorrência do suicídio de um usuário que foi encontrado com as mãos atadas!


Essa publicação resultou em um longo processo judicial de uma associação representativa dos manicômios, contra Marcus Vinícius. Ao final, o tribunal recusou as acusações dos manicomialistas.


Todas as ações de combate antimanicomial tinham apoio e, em grande parte das vezes, tinham origem no Conselho Federal de Psicologia. E isso não era algo voluntarioso por parte dessa entidade. Na série histórica sobre a opinião das psicólogas, que mantínhamos por meio de pesquisa, essa era uma das ações mais valorizadas pela categoria profissional. 


Então, a atenção organizada da profissão a essa temática da defesa de Direitos Humanos foi algo que trouxe materialidade a uma compreensão do que seja compromisso social da Psicologia. Mas, é importante lembrar a profissionais que viveram esses eventos e alertar os mais novos de que esse tema não era tão presente na vida da Psicologia como nos dias de hoje.


Aliás, a Psicologia que naquele momento assumiu seu papel ético político na defesa de Direitos Humanos já teve outro tipo de comportamento. Basta lembrar que o ditador brasileiro mais sanguinário na sequencia estabelecida pelo golpe de 1964 recebeu o título de psicólogo honorário. 


Comissão Nacional de Direitos Humanos


Também é importante registrar que a relação de profissionais da Psicologia com Direitos Humanos não foi inventada na virada do século. Houve iniciativas muito importantes nessa preocupação com a negação de direitos da população brasileira, anteriores a esse período. Exemplo disso são as iniciativas do grupo Tortura Nunca Mais (organizados por Cecília Coimbra), o posicionamento da Madre Cristina no Instituto Sedes Sapientai, diferentes esforços em defesa dos direitos das crianças, dentre outros.


O que se produziu na virada do século foi esse movimento organizado e organizativo da profissão na assunção da defesa dos Direitos Humanos. O certo é que não havia essa marca tão profunda de vínculo entre Psicologia e Direitos humanos como transparece hoje de forma cristalina nas entidades e na formação profissional em Psicologia.


Como alguém que viveu por dentro o processo de criação desse vínculo, Ana Bock sempre busca enfatizar que, na leitura dos coletivos com que contávamos para fazer esse movimento, o eixo central do pensamento sobre Direitos Humanos, sua perspectiva mais geral, consiste no combate à desigualdade social. A propositura da vinculação com Direitos Humanos se apresentou como a forma mais adequada de enfeixar as lutas de combate à desigualdade social.


Apesar da imperfeição ou incompletude da lista de direitos que são reconhecidos como universais, como nos alertava o Marcus Vinícius, compreendemos que o momento histórico apontava para esse vínculo como a possibilidade institucionalizar a luta de combate à desigualdade.


Então, além de apontar o combate antimanicomial, vale a pena elencar algumas outras IREs relacionadas à inserção da Psicologia na luta cotidiana em defesa de Direitos humanos. IRE era o nome que atribuímos aos projetos que decidimos colocar em marcha naquele momento. Era uma questão de método. Como sabíamos das limitações da entidade e da enormidade de temas a serem abordados, decidimos escolher as ações que marcariam tendência no desenvolvimento de ações futuras. 


A de maior envergadura, por ser aquela que poderia oferecer organicidade às demais, foi a criação da Comissão Nacional de Direitos Humanos. Ela foi criada como uma instância no CFP, com autonomia política e até alguma autonomia financeira. A primeira Comissão foi composta por Cecília Maria Bouças Coimbra, Eliane Maria Fleury Seidel, Heliane B. Conde, Leôncio Camino, Marta Suplicy, Pedrinho Guareshi e Marcus Vinícius de Oliveira da Silva.


A experiência foi tão importante que os Congressos Nacionais da Psicologia decidiram que cada Conselho Regional tivesse a sua Comissão (permanente) de Direitos Humanos visando a produção de ações do mesmo tipo a nível regional e apoiando a Comissão Nacional. (Os Congressos Nacionais da Psicologia são um mecanismo de deliberação horizontalizados, que buscam garantir que um máximo de profissionais possa participar de forma democrática na condução dos assuntos da profissão. Foram criados ainda antes desses eventos da virada do século. Eles acontecem a cada três anos e têm forte impacto no desenho da ação do CFP nos anos seguintes).


Mas o mais importante é que a atuação do CFP e da Comissão Nacional de Direitos Humanos não se restringia ao plano do debate de ideias ou à emissão de notas de apoio ou de repúdio a algum evento. Aconteciam sistematicamente campanhas que tinham a perspectiva sempre de envolver um máximo de pessoas em iniciativas concretas.


Alguns exemplos podem denotar essa perspectiva. A campanha “O pior do pior” chamou atenção para os manicômios judiciários. Também dentre as primeiras campanhas da Comissão Nacional de Direitos Humanos ocorreu a campanha que afirmava que o preconceito racial humilha e a humilhação social faz sofrer.   


Mas as iniciativas não se restringiam a campanhas. Naquele momento foi estabelecida a base para o que hoje chamamos de psicologia anti-racista, que foi alvo não somente de campanhas, mas também de resolução da autarquia. Vale a pena conferir o texto da resolução que foi estabelecida em 2002, onde ficou estabelecido que era papel dos profissionais da Psicologia fazer combate ao racismo, antecipando o mote que hoje empregamos, de que não basta não ser racista, é preciso ser anti-racista. (https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2002/12/resolucao2002_18.PDF).  


Envolver profissionais da Psicologia diretamente na produção de ideias e de ações foi uma marca geral daquele período. Foram realizados inúmeros eventos relâmpagos, manifestações nas portas de embaixadas, defesa do fim do cerco a Cuba nos congressos internacionais, colocação de imitações de caixões e cruzes na frente do Ministério da Justiça e outros pontos da esplanada em Brasília para denunciar a violência contra crianças e adolescentes.


Um exemplo: durante uma reunião da APAF em Brasilia, na hora do almoço saímos todos para uma embaixada para fazer um protesto em nome da Psicologia brasileira. Mas, fazíamos isso na hora do almoço. Porque naquele momento ainda não estava assentado que seria correto fazer isso no horário de trabalhos da Assembleia.


Além das campanhas, manifestações e regulamentações, o Conselho Federal de Psicologia resgatou seu poder institucional e passou a realizar, em colaboração com a OAB e o Ministério Público, inspeções em hospitais psiquiátricos. Isso causou enorme repercussão, porque o fato é que nossas organizações não tinham ainda batido na porta de uma instituição e dito: viemos aqui inspecionar vocês.


A Resolução 01/99


Essa resolução estabeleceu que profissionais da Psicologia não poderiam propagandear serviços de cura para a homossexualidade. A principal argumentação foi de que não havia respaldo técnico-científico para argumentar que a homossexualidade fosse patologia. Oras, o que não é doença, não pode ter cura. Vale a pena conferir o texto: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf


Importante lembrar que o método de construção de resoluções na autarquia incluía amplo debate em todo o país. Apesar de ser um atributo do plenário do Federal, cada resolução é proposta na APAF, que reúne representantes de todas as unidades da autarquia. O texto é remetido aos plenários regionais, muitos dos quais promovem debates abertos em seus estados.


Enfrentamos naquele momento a resistência, principalmente, de representantes e profissionais que se apresentavam como evangélicos. Felizmente, à época foi possível demonstrar que os cuidados com a profissão não impediam que qualquer profissional oferecesse apoio a quem estivesse se sentindo mal com sua orientação sexual, fosse homossexual ou heterossexual.


Ficou nítido que os argumentos vinham carregados de pensamento teológico, mas o fundo da problemática era principalmente comercial. O negócio da oferta de um determinado serviço prometia ser lucrativo e isto estava sendo obstaculizado por uma definição do CFP que impedia que o conhecimento psicológico fosse objeto de mercadejadores.  


Isso agora pode ser verificado. No filme Boy erased, que não chegou a ser lançado nas salas brasileiras de cinema possivelmente por pressões moralistas, conta-se a história de um jovem homossexual que é encaminhado por seu pai para um tratamento chamado de reversão. Aqui no Brasil isso foi intitulado de cura gay. Pois o filme nos informa, já nos letreiros finais, um movimento financeiro de bem mais de dez bilhões de reais nesse tipo de tratamento nos Estados Unidos. Um super negócio.


Além de a resolução ter sido objeto de disputa política no seio da profissão, por exemplo pela promoção de insubordinação às definições do CFP e em todos os processos eleitorais desde que ela foi estabelecida, foi aberto um processo judicial visando a sua anulação. Vinte anos depois da publicação da resolução 01/99, ela foi sacramentada pelo Superior Tribunal Federal.

 

 

 

Depoimento na íntegra Antonio Carlos de Almeida Castro, Kakay

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Depoimento na íntegra Paulo Vannuchi

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Depoimento na íntegra Marta Elizabete de Souza

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Depoimento na íntegra Maria Auxiliadora Arantes, Dodora

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Depoimento na íntegra Cecília Coimbra

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Depoimento na íntegra Leoncio Camino

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Depoimento na íntegra Paulo Roberto Ceccarelli